Bom dia, boa tarde, boa noite, por enquanto.
Eu juro que era pra ser uma crônica.
Abri o caderno para escrever alguma observação miúda da vida. A fila da farmácia, uma conversa no terminal, algo com cheiro de domingo.
Mas o processo criativo me levou para a cabeça de algumas personagens, uma história, a trama posta e pelo menos uma transformação.
Crônica e conto são próximos, mas não idênticos. A crônica costuma nascer do mundo real, do que se viu, viveu ou ouviu. É um flagrante da vida. Diz Marcelino Freire que a crônica é irmã da poesia. O conto, por outro lado, é ficção, não deve satisfação a ninguém.
Hoje, não trago uma crônica. Trago um conto. Vocês conseguem perceber a diferença? Não que importe muito.
Depois não digam que não avisei.
Trilha Sonora
Para ser lido ao som de Yes.
Um motoclube de tricoteiras no Paraguai
As jaquetas e coletes de couro deram lugar a casaquinhos invocados de lã, tricotados pelas próprias integrantes do motoclube “Tricoteiras do Asfalto”.
Dona Lurdes “Ponto Alto”, presidente, conhecida por suas habilidades com macramê e por pilotar uma CG customizada com cestas de fibra de cânhamo, teve uma ideia: uma excursão com todas elas para o Paraguai.
Dona Dalva “Meia-noite” só usava lã preta, mas sugeriu uma camiseta pra o grupo: Amigas de moto até o Iguaçu: Bordado, claro.
Iolanda “Bala na Agulha” se revoltou: Onde já se viu, eu não sou amiga de todas vocês! Este trapo, eu não uso.
Silêncio no café colonial da sede.
Uma a uma, elas começaram a se virar para Iolanda. Não ousavam abrir a boca, mas eu apostaria um contador manual de carreiras que pensavam: o show vai começar.
Dona Lurdes podia até presidir o clube, quem mandava mesmo era Iolanda. Dizem que ela começou ainda menor de idade. Tricotou o primeiro antes de completar dez anos. Foi pega inúmeras vezes com agulhas ilegais no raio-X. E nunca, sob hipótese alguma, levava desaforo para casa.
Precisaram trocar a arte da camiseta. Era isso ou a guerra.
Da estrada, elas eram as rainhas: furavam pedágios, compravam fiado, entravam com bebida nos restaurantes, e ninguém dava um pio. Atravessaram o estado inteiro, consumindo os quitutes que tinham levado. Sucos passados para garrafas caçulinha, pelo simples prazer de dividir um tubo em dois, três. Brigaram nos caixas das conveniências. Todos os comerciários tinham uma aposta, principalmente contra Iolanda. Quem conseguisse cobrar mais do que o anunciado, venceria. Alguns comemoravam antes da hora, a maioria não tinha nem esse gostinho. Iolanda podia demorar uma hora, às vezes até um dia, mas não usava “Bala na Agulha” no nome à toa. Telefonava, voltava no lugar, acionava o Procon, faria o prefeito da cidade agir em sua defesa, mas conseguiria seu dinheiro de volta. Com juros e processo judicial, se fosse necessário.
Iolanda acabou se atrasando, e, para piorar, sua moto morreu. Não queria pegar mais. Tentou convencer uma senhora a levá-la na garupa até a fronteira e não viu quando todo o grupo cruzou a Ponte da Amizade.
Agora, era cada uma por si.
Algumas tinham lista de compras. Um tênis pro neto, alguma porcaria pro filho, uma sanduicheira superfaturada pra vizinha de porta há quarenta e sete anos. Outra dedicavam seus bagageiros para bebidas, cigarros analógicos clandestinos. Eram contra os eletrônicos.
Fumaça só se faz com fogo, era a tatuagem no braço de Dona Lurdes. Fazia tempo que ela pilotava com a corda no pescoço. Não teve um único exame de saúde que autorizasse sua viagem, mas forjou os atestados e a assinatura do filho. Começou a sentir tontura na fila de uma loja. Caiu dura no chão de outro shopping.
Uma moça que passava na hora gritou ¡Mi mamá, mi mamá!, mas não usava uma peça de tricô no corpo e chamou a atenção de pessoas próximas. O segurança foi rápido em interceptar o golpe. A meliante tentava se passar por filha e levar a bolsa da defunta. O bom samaritano encontrou o celular no corpo de “Ponto Alto” e ligou para o último número que trocou uma mensagem de bom-dia com ela. Era Iolanda.
Iolanda conhecia o mapa de Cidade do Leste, mesmo que estivesse sem uma lanterna no apagão e não demorou a chegar. Mandou uma mensagem de áudio para o grupo e convocou as Tricoteiras do Asfalto a decidirem os próximos passos. Quando a última apareceu, começou o conclave.
O consenso foi imediato. Iolanda “Bala na Agulha”, a nova presidente.
Sua primeira medida, decretar homenagem à vida da inesquecível Lurdes: Não vamos deixar o luto nos abater, voltaremos às compras!
E todas ergueram suas agulhas em sinal de aprovação.
Vale a pena ler de novo
Ficção ou não? O que Leonardo Paduro propõe é um encontro de um escritor com Trotski, durante os seus últimos dias em Havana.
Um apanhado ficcional e reflexivo de um período social, que na mão firme de Padura, envolve da primeira à última linha.
Li alguns anos atrás, em versão digital, mas encontrei um exemplar amarelado no sebo recentemente. Será a leituras das próximas semanas.
E você? O que lê atualmente?
Por hoje é isso.
Agradeço quem dedicou seu tempo e chegou até aqui.
Fiquem bem e até a próxima.
Caraca, conto muito booom!!! Foi divertido como as crônicas, mas com a surpresa cirúrgica própria de um conto.
Eu fiquei na dúvida, ficção ou realidade, ou realidade fantástica? Bom demais a leitura Tomate!
Bala na Agulha” kkk