Bom dia, boa tarde, boa noite, por enquanto.
O texto de hoje é dedicado a todas as pessoas que algum dia já se encantaram com José Alberto "Pepe" Mujica Cordano.
Hasta siempre!
Hoje mais um conto para vocês.
Trilha Sonora
Para ser lido ao som de Otto.
A herança do mar
Outro barco pesqueiro desapareceu em alto mar. O terceiro, somente naquela semana. Ao todo, onze homens sumiram da noite para o dia, deixando em polvorosa a pequena população costeira. Jornalistas de todas as emissoras se aglomeravam pelo melhor ângulo na praia, helicópteros sobrevoavam rochas e ilhas mais próximas. Autoridades locais e interestaduais deslocaram reforços para prosseguir com as buscas. As rodas de conversa tinham um único assunto: — Desse jeito ninguém vai mais pescar, não. — Sabe o que é pior disso tudo? Nem chover, choveu. Sumiram na calmaria. — Eu acho mesmo é que eles foram tudo embora! Se encheram o saco desse lugar.
Doris passava o café quando ouviu batidas apressadas na porta. Deixou cair a xícara, sabia que algo havia acontecido, pressentia a sua hora. Josué, seu único filho e companheiro, ainda não tinha retornado da pesca. Ela pediu cuidado na noite anterior, disse que eles iriam para território sagrado e o mar não tolerava brincadeiras. O vizinho confirmou os seus temores, Josué entre os últimos desaparecidos. Doris sabia o que fazer, mas permitiu que as lágrimas salgassem sua face. Os homens vão encontrar eles, vizinha. Ela sabia que não. Os mais velhos até desconfiavam, os mais novos só colocavam a desconfiança junto com os celulares no bolso de trás. Doris pediu um momento, fechou a porta para o vizinho, deixou o bule na pia da cozinha e saiu pelos fundos da casa.
No caminho até o mar, Doris viu seu falecido pai, correndo de mãos dadas com ela, pegando uma flor, colocando atrás da sua orelha. Papai, quando eu crescer quero ser do mar, igual a você. Ela não queria que seu filho tivesse se tornado um pescador.
Pediu ajuda para empurrar o barco até a água, se recusaram. Estava sozinha. Ligou o motor e partiu em busca do seu passado. Tentaram pará-la, mas, depois de atravessar a arrebentação, navegou em silêncio, em busca das vozes que negou. Ainda se lembrava do trajeto feito com seu pai. Depois de passar a ilha, era só seguir a noroeste e chamar por elas.
Cinquenta anos se passaram desde que ela e o pai encontraram outros pescadores alvoroçados em alto mar. Se aproximaram com cautela. No outro barco, três homens puxavam a rede e quase pendiam para o mar. Clamaram por ajuda, e o pai de Doris pediu para ela esperar um momento. No três! Um, dois, três, puxar! Uma cauda saiu das águas. Enrolada na rede, suas escamas refletiam o sol.
Doris parou o barco. As hélices dos helicópteros estavam fora da rota. Eles nunca encontrariam os pescadores desaparecidos. Ela se levantou, abriu as mãos para o céu, as fechou para o mar e emitiu um canto suave.
Quando os três pescadores e seu pai conseguiram puxar a rede para o barco, caíram sentados. Uma forma, metade peixe metade mulher, se debatia entre os fios. Fascinada, a pequena Doris pulou para mais perto. Os olhos dos pescadores brilhavam em tons de ouro. Vamos levar para a praia. A gente vai ficar rico. O pai de Doris não percebeu quando a menina se aproximou com uma faca na mão. Os homens discutiam o que fazer com a prenda, presos na descoberta. Doris começou a cortar a rede. A criatura se debateu e a faca riscou seu rosto. Ela mirou a maresia de Doris. Assentiu com a cabeça. A menina tinha o sangue da criatura nas mãos e o eco de uma canção nos seus ouvidos. Quando os homens perceberam, o ser mulher-peixe já estava de volta ao mar.
A voz de Doris desafinou uma melodia, e a água ao redor do barco começou a borbulhar. Cabeças femininas surgiram lado a lado, deixando que seus cabelos se encontrassem, como se dessem as mãos. As bocas ultrapassaram a superfície, o canto ganhou tonalidade, um coral em alto mar. Doris só parou quando as metades mulheres emergiram por completo.
Venho em busca do meu filho, irmãs. Sei que ele está com vocês. Sou Doris, filha de Janaína.
A mais velha de todas, com uma cicatriz no rosto, se aproximou, estendeu a mão e anunciou que Josué era agora parte delas.
Propôs uma troca, a vida do filho pela eternidade da mãe.
Doris mergulhou de mãos dadas, e a última lembrança foi suas pernas batendo em forma de cauda.
Por hoje é isso.
Agradeço quem dedicou seu tempo e chegou até aqui.
Fiquem bem e até a próxima.
É de arrepiar... E o Mar, lá com seus mistérios...
Esse conto me deixou emocionada. “Olha o canto das sereias….”Odoyá!