Bom dia, boa tarde, boa noite, por enquanto.
Sem maiores delongas, o texto de hoje reflete sobre transformações, falsas convicções e intensidades.
Boas leituras.
Trilha Sonora
Para ser lido ao som de Bombay Dub Orchestra.
As verdades que tiramos do cu
Os protestos de 2013 começaram pouco antes do meu voo para Mumbai. O Brasil esboçava as primeiras braçadas na fossa comum, e eu consegui um contrato de trabalho por um ano na maior cidade, do país mais populoso. Logo, eu, que jurava nunca morar em São Paulo.
Desci em solo indiano, alfândega, malas, sem Wi-Fi, muito menos 3G. Sai no saguão em busca de uma pessoa sem rosto. Alguém deveria me receber, mas não anotei o nome. Nem o número. Não sabia o nome do hotel, onde ficaria por duas semanas, nem sua localização. Não tinha trocado uma rúpia sequer. E todo mundo parecia querer algo de mim.
Taxi, sir? Sir, taxi? Tuk tuk?? Sir?
Dica #1: tenha a persistência e a perseverança de um indiano.
Tentei voltar para o aeroporto. Lembrava de ter passado por uma agência de câmbio. A cotação era péssima, claro, mas fui juvenil. No portão, o soldado pediu o cartão de embarque. Mostrei o bilhete de chegada, não tinha voo de saída. Não poderia entrar.
Insisti. Procurei outra entrada. Mesma história.
Sai para o estacionamento e vi uma mão erguida no caos. Segurava um papel com meu nome. Era meu Príncipe Shah-Jahan, e de tuk tuk fomos para o hotel.
Dica #2: se você não sabe negociar, nunca pegue um tuk tuk.
Dica #3: se você não sabe negociar, nem vá para a Índia.
Alguns dias se passaram. O cocô continuava firme.
A comunidade brasileira só não era maior que a colombiana. Planejamos algumas placas: “se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”. Em português, inglês, até em hindi.
Escrevi: “Mãe, eu não tô na Globo”.
Se eu fosse um avestruz, não digo que aceitaria a cloroquina do Prisão de Ventre, mas bastava apertar um pouco para brotar um cirista.
Glória a Shiva quando o tempo é bom com as pessoas.
Levamos os cartazes para frente da embaixada brasileira. Para não dizer que não deu em nada, no caminho de volta, descobri um carro de caldo de cana, igualzinho aos nossos.
Enquanto isso, no Brasil: não vai ter copa, pedalada, panelaço.
Em Mumbai, eu absorvia os olhares, imantados pela genuína curiosidade. No trem, eu virava para o lado e encontrava um indiano grudado em mim, fixo no meu celular, sem o mínimo disfarce ou pudor. Eu chamava e eles sorriam, mas continuavam a me sondar. Perdi as contas de quantas fotos pediram para tirar comigo. Eu parecia uma estrela, uma influencer na CPI, um holofote no meio do breu.
Depois de duas semanas no hotel e quatro meses com brasileiros, queniano, marfinense, mexicana, tcheco, grego, alemã ― num apartamento onde deveriam viver apenas quatro homens ―, me mudei. Fui para a região metropolitana. Dividiria um apê com dois indianos.
Cheguei com um rolo de papel higiênico na mala.
Vai usar isso para quê?
Limpar a bunda, talvez?
Ele me olhou, estufou o peito. Filosofou.
Se você pisa descalço na merda, o que você faz? Lava o pé, não lava?
Lavo.
Se você encosta a mão na bosta, você lava a mão, não lava?
Lavo.
Então por que você quer passar um pedaço de papel no seu cu?
Mirei o lava-jato ao lado do vaso. Entendi que não era só por vinte centavos mesmo.
Por hoje é isso.
Agradeço quem dedicou seu tempo e chegou até aqui.
Fiquem bem e até a próxima.
Estou há tempo me atualizando com os textos por aqui e estava com saudades das cronicas. Li tomando meu cafezinho, sempre me arrancando uma risada!
Aí, Guilherme, adorei cara. Estive em Mumbai em 2009. Desci para uma conexão, tinha várias horas de espera e decidi pegar um hotel pela internet. Até anotei o endereço, mas quem diz que o cara do Tuc-tuc conseguiu achar? Nada. Não existia smartphone e tuc-tuc smartdriver nunca existiu. O cara rodou comigo a cidade toda e acabou de deixando de volta no aeroporto porque estava chegando a hora do voo para Delhi. Ainda queria me cobrar o dobro, porque não encontrou o endereço, e não falava uma palavra de inglês. Comédia mesmo. No fim, deu tudo certo.