Bom dia, boa tarde, boa noite, por enquanto.
Você consegue distinguir um conto de uma crônica?
Um conto, geralmente, tem uma estrutura narrativa, um personagem aqui, outro ali. Em comum, um conflito e pelo menos uma transformação. Se entramos do mesmo jeito que saímos após a leitura de um conto, perdemos nosso tempo.
Elementos ficcionais abundam nesse gênero literário, enquanto a crônica — brasileira por excelência — está ligada ao cotidiano, com um tom mais direto, confessional, opinativo, e não necessariamente estruturado em começo, meio e fim.
Escrever crônicas não é mais fácil do que compor contos, nem o contrário. A beleza mora no interior das palavras e das suas aproximações. A excelência está na linguagem — e não me refiro à norma culta.
Nem te conto qual é o gênero do texto de hoje.
Depois, não diga que não avisei.
Boas leituras.
Trilha Sonora
Para ser lido ao som de Los Mirlos.
Manual de higiene para o apocalipse
Poucas coisas lhe conferiam maior prazer do que movimentos circulares em sentido anti-horário com hastes de plástico, ou com a ponta dos mindinhos, embebidos em leite de colônia, dentro do ouvido direito e do esquerdo. O médico foi enfático. Você não limpa, apenas empurra a cera para dentro. Mas não foi sempre assim. Até o ano passado, o esplendor provinha de objetos peculiares para palitar os dentes. Depois de inúmeros testes, com corda de violão, cabo de celular, cadarços variados (o gosto do All Star amarelo era o mais aprazível), elegeu o anel da lata de cerveja choca como o favorito.
Não mencionaremos seu nome, para não o comprometer, mas ele sempre foi um adulto responsável. Pagava as contas com no máximo um dia de atraso, era dono do próprio nariz (mesmo após a terceira rinoplastia) e do apartamento na Avenida Beira-mar de Pirapora do Embaú, herdado após a morte da tia avó, envenenada por engano com o chumbinho que ela própria comprou para aniquilar o gato da vizinha.
Estava com as férias agendadas, bilhetes comprados, adicional de bagagem e reserva do melhor hotel que o cheque especial podia pagar. Pensou em telefonar para a ex. Contar que iria refazer os passos da lua de mel, menos o coma alcoólico desta vez. Pegou o telefone, sabia o número de cabeça, mas parou antes de completar a ligação. Um incômodo persistente no ouvido esquerdo. Não coçava. Não doía. Vibrava. Como se alguém soprasse uma canção do Gusttavo Lima, em ritmo de cumbia colombiana, direto para dentro da sua cóclea. Tentou um cotonete, o mindinho, até o vibrador da ex (multifuncional, dizia na caixa). De nada adiantou.
E se a frequência estivesse dentro e não fora?
Comprou um otoscópio digital. Finalmente, poderia ver com os próprios olhos o que o médico tinha medo de revelar. Conectou ao celular, acendeu a luz do aparelho e o penetrou solenemente no canal auditivo. Espasmos. Arrepios. Fulguras de tesão. Quando se conteve, lá estava. Não cera, nem inflamação. Um olho. Aberto.
Pulou da cadeira e jogou o aparelho longe. O celular continuava a transmissão, sem imagem. O aplicativo travou. O mundo silenciou. Tapou os ouvidos. O esquerdo parecia mais leve.
Passou a dormir de um lado só, não suportava deitar sobre o lado esquerdo. Os ruídos voltaram, mas agora eram vozes. Às vezes em espanhol. Às vezes em romeno. Às vezes com o pigarro da sua tia avó.
Nunca mais bebeu. Nem interagiu com o gato da vizinha, que voltou a aparecer, embora ela jure que o enterrou com as próprias mãos.
Semana passada, num surto de serenidade, entrou na farmácia e comprou uma caixa inteira de cotonetes. Foi visto horas mais tarde andando em círculos, anti-horários, pelas ruas próximas ao calçadão, com o olho esquerdo completamente branco.
Na câmera de segurança da farmácia, antes de desaparecer, sussurrou para a atendente:
— O anel abre. Mas só por dentro.
Vale a pena ler de novo
A recomendação hoje não é simplesmente o livro A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. Le Guin. Meu pedido — se posso tanto — é que você busque uma leitura diferente da habitual, um estilo que não está entre seus favoritos. Vá com calma, paciência e mente aberta. Não se cobre. E se não der certo, desista por ora. Deixe para um momento mais oportuno.
Sobre o livro de Le Guin, o que mais me impressionou foram as questões de gênero abordadas em seu mundo ficcional — escritas há mais de 50 anos, e cada vez mais atuais.
Por hoje é isso.
Agradeço quem dedicou seu tempo e chegou até aqui.
Fiquem bem, e até a próxima.
Às vezes leio seus textos achando que tô entendendo, só pra depois ser surpreendida e ter que repensar tudo que li até então. Só sua cabeça mesmo, Tomate, só você 💛
Arrepiante!! de novo... Mas, citendo o brocardo latino: Quid abundant non nocere! Ou traduzindo, O que abunda não faz mal. Não tem nada a ver, mas nem precisa... Ah, sim! era um conto. E por mim saí transformado. Nunca mais chego perto de um cotonete.