Crônica bônus de Páscoa
Durante a infância, certas comemorações foram mais aguardadas do que outras. Pouco me importava as motivações ou o que o menino Jesus tinha feito, eu queria mesmo as recompensas capitalistas. Não pensem que eu era um mau garoto por isso. Mas vamos concordar, para uma criança, a ideia de um coelho que bota ovos de chocolate, ou de um velhinho barbudo e simpático cheio de presentes descendo pela chaminé ― mesmo que nunca tenha morado em uma casa com chaminé ― cativa mais que as histórias de um homem que multiplica pães, anda sobre a água, transforma água em vinho, ou sobe ao Reino dos Céus para salvar a humanidade dos seus pecados.
Que pecado eu tinha nesta época?
Longe de mim blasfemar. Eu rezava o Pai Nosso, a Ave Maria e outras preces, todas as noites antes de dormir e durante as viagens de carro nas férias. Papai do Céu está de prova que não minto.
Engana-se também quem cogita que tudo caía de mãos beijadas no meu colo. Não, não, não. Para conquistar os corações do coelho e do bom velhinho, eu precisava cooperar durante o ano inteiro. Fui um bom menino, comi brócolos, fiz o dever de casa como os adultos mandaram. Era uma troca, não sei se justa, mas nunca encontrei um sindicato para reivindicar os meus direitos.
Mas naquela Páscoa, eu virei o jogo ao meu favor.
Estávamos na praia, o calor derretia os chocolates, e meus pais intermediaram a negociação. Para receber os doces, o coelhinho exigia algo: minha chupeta.
Maldito, interesseiro, safado, eu sabia que ele me sondava, percebia seus movimentos, mas a minha chupeta? Não vai nem caber na boca dele. Não fazia o menor sentido, mas minha mãe estava irredutível: sem entregar a chupeta, o coelhinho não vai aparecer. Chorei, fiz bico, birra, chupei a chupeta com força, talvez pela última vez. Enfim, cedi. Entreguei a companheira de sonecas e da falta de atenção. Meus pais concordaram que fiz a escolha certa e afirmaram que no dia seguinte o coelho viria com fartura.
Entre o ônus e o bônus, uma noite inteira de escuridão, solidão, monstros, durante horas, uma eternidade inteira.
Bolei um plano.
Sem a chupeta e com os ouvidos atentos, eu ficaria de tocaia. Quando o coelho aparecesse e começasse a distribuir os chocolates pela casa, eu me levantaria e faria uma contraproposta. Meu pai leu uma história para eu pegar no sono. Não posso perder o foco. Eles estão juntos nessa tramoia, não vou ceder, preciso ficar atento, dormi Antes de ouvir seus passos.
Ao acordar, suas pegadas escada abaixo. Esqueci completamente da parte que abandonei. Desci, colhi os bombons e barrinhas pelo caminho. Meus pais e avó já tomavam café e, logo que me viram, foram categóricos: olha só quem passou por aqui! A obviedade dos adultos é patética.
Corri, recolhi as guloseimas, encontrei uma cesta com mais chocolate. Eu estava feliz, mas não por completo. Me faltava algo entre os dentes de leite. Cabisbaixo, ainda não processava a diabetes do futuro, resolvi mexer em algumas gavetas da sala. Abri uma a uma, para novamente conferir os baralhos, blocos de anotação com placares de buraco e cacheta, carrinhos e bonecos perdidos. Toalhas de mesa, porta copos, esteiras para pratos quentes. E eis que na última delas, algo novo se destacava de todos os utensílios domésticos: a minha chupeta.
Com os dentes ainda marrons, mergulhei minha velha amiga entre os lábios e pensei: hoje não, senhor Coelho. Hoje, não.
É muito curioso o que a imaginação faz. Vi o Guilherminho descendo as escadas do sobrado. Os pais e a avó tomando café da manhã bem plenos. O sorriso sarcástico do “olha o que o coelhinho trouxe”. Esse piá desaforado burlando as regras. Ah, se a gente tivesse uma máquina do tempo!
Já na foto dava pra ver quem era mais astuto. Toma essa, senhor Coelho!