42| Manual prático para se tornar um herói urbano
Quando a moral tropeça no meio-fio da desigualdade
Bom dia, boa tarde, boa noite, por enquanto.
Estamos vivendo, sobrevivendo, ou vendo tudo girar de cima de uma gangorra, num parquinho que só permite seres humanos menores de 8 anos de idade?
Não entendeu? Nem eu.
Depois não digam que não avisei.
Boas leituras.
Trilha Sonora
Para ser lido ao som de Machete Bomb, Dow Raiz, BNegão e Odair José.
Manual prático para se tornar um herói urbano
Ladrão. Pega ladrão. Ladrão correndo, fugindo, pega. Pega.
Era domingo, as ruas do centro desabitadas durante o crepúsculo. Nem uma vela para Dario. Eu puxava uma mala grande com rodinhas, cheia dos bens mais preciosos, valiosos, valorosos que possuo. Livros. Não meus, mas das autoras, dos autores, dos credores da editora. O celular na outra mão, em busca do nome do motorista, a 2 minutos de distância. Na direção das vozes, um vulto, envolto no tumulto das almas. Vinha na minha direção. Do mesmo lado do petit-pavé. Os gritos corriam em conformidade aos passos largos, mas não alcançavam. Guardei o aparelho no bolso, o Uber podia esperar. Eu deveria ter entrado no estabelecimento de novo, esperado o meliante passar. Sequer cogitei.
Ladrão, pega ladrão.
Súplica. Urro, ordem, clamor.
Solto a mala e seguro o bandido? Estico o pé e faço ele tombar? Um encontrão com o ombro, deslocando o trombadinha no chão? E se lincharem o cara, terei culpa disso?
Ele se aproxima. Touca mal posicionada na cabeça, orelhas de fora. Blusa sem uma das mangas, rasgada, perdida, suja. Chinelo. Ou um pé de cada tênis, sem cadarço. Um pacote plástico verde no bolso de trás. Talvez dentro da calça. Tudo muito rápido. Flashes de vida.
Menos no olhar.
O peso de uma escolha me paralisa, deixo de ouvir o universo, pouco me importa se foi o celular, a carteira, o pirulito de uma criança. Aquele ser se transforma na Medusa. Eu viro pedra. A água do seu corpo bate e fura, me perfura, estamos agora conectados pela cumplicidade, pela pena, pelo desgosto. Não há sorriso, muito menos esperança. Quem espera não dança, não come, não precisa fugir. A chama quase se apaga. Passa por mim e mantém o rosto altivo, fixo no meu, o corpo a se distanciar, mas nossa ligação se mantém. Parte sem um agradecimento em palavras. Não precisa.
Os gritos me alcançam. Outras pessoas aparecem.
Ladrão. Ladrão correndo.
Sou um cagão de merda. Deveria ter agido. Não tive coragem.
Pega, pega.
Alguém pergunta para os gritos: Celular? Pegaram o celular?
Os gritos gritam: Levaram dois pacotes de fralda da farmácia.
O herói ficou parado. O ladrão correu. E a cidade seguiu vazia.
Vale a pena ler de novo
Clássicos ganham tal nome pela perpetuação das suas vozes, sonoridades, cenas, cores através do tempo.
Crime e Castigo nos coloca na pele de Raskólnikov e nos transporta para a Rússia de Dostoiévski, mas também para o nosso Brasil.
Um escritor muito além do seu tempo. Que sorte.
Cuidado com traduções indiretas. As primeiras edições impressas no Brasil foram traduzidas do francês, e a cada nova tradução parte do vocabulário se perde. Se puder escolher apenas uma edição, fique com esta da editora 34.
Por hoje é isso.
Agradeço quem dedicou seu tempo e chegou até aqui.
Fiquem bem e até a próxima.
Ótima crônica do herói anônimo, Guilherme.
Praça Carlos Gomes, na farmácia o ladrão pega o dinheiro da mulher que ia pagar seus remédios e sai correndo. Não me deu tempo de escolher: Esbarrou em mim e fomos os dois para o chão. Foi seguro por populares. A dona do dinheiro me agradeceu pela ajuda. - "Eu não fiz nada. " e não tinha feito nada mesmo... Respondendo à primeira pergunta: Minhas palavras costumam vir temperadas com ironia. Talvez me causassem uma baita azia... Abraços.