Bom dia, boa tarde, boa noite, por enquanto.
Duas semanas sem escrever aqui, mas possuo um atestado: estava com a
n’A Feira do Livro. Foram dias intensos de muitas trocas, lançamentos, aprendizados e agradecimentos.O texto abaixo é pura ficção.
Depois não diga que não avisei.
Trilha Sonora
Para ser lido ao som de Antonio Cicera e Marina Lima.
Por debaixo dos panos d’A Feira do Livro
Na praça, em frente ao palco que viu as Libertadores de Neymar e Cássio, a bicicleta de Leônidas e uma centena de gols de Edson, ocorreu a quarta edição d’A Feira do Livro. Proposta por uma revista literária e podcast. Organizada por operários, caminhoneiros, iluminadores, seguranças, pessoal da limpeza, do transporte, de cada uma das editoras e livrarias, técnicos de som, imagem, marketing, imprensa, por todas as pessoas autoras e suas linhas escritas no papel, por todos as ancestrais que emprestam suas palavras, por todas as contemporâneas que entendem a caminhada, letra a letra, livro a livro, e nos presenteiam com danças em outras vírgulas e saltos em outros mundos.
O Ministério da Leitura adverte: “a cada nova pessoa leitora ou escritora no Brasil, o Pelé marca o gol que o Pelé não fez. “
Durante nove dias e nove noites e todas as quatro estações do ano, Dona Neide perambulou pelo evento. Viu uma viatura policial parar na frente de um estande, o militar descer do volante, perguntar sobre os livros, cumprimentar todo mundo com um aperto firme e inquisidor, falar de umbanda e candomblé, com a câmera no peito, será que vão ver o filme se acontecer alguma merda?, pensou Dona Neide, e o policial ganhou um livro de contos de um escritor da tenda e voltou noutros dias para falar que nem todo mundo era como ele, que no quartel não iam gostar da história de desarmamento, que o sargento leu, riu e quer falar com você. Essa última parte a Neide inventou, mas o resto ela jura que é verdade.
A senhora encontra o rapaz que subirá ao palco no penúltimo dia, pegando o microfone em forma de protesto. Alguns dias antes, trocaram um dedo de prosa, ele com poemas grampeados, ela no papel de para-raios de maluco. Um pouco de poesia por pix. Ele ainda a presentearia com um novo livro improvisado, talvez por não acreditar no poder de paridade de textos mais longos.
O mais brasileiro de todos os gêneros literários, ao rés do chão, tipo você e dona Neide neste momento, você esperando a próxima fofoca, como um livro de crônicas lançado a noventa e nove reais, provando que a crônica é nossa até na desigualdade social.
Ou quem sabe, um escritor estrangeiro criticando o nacional mais vendido no mundo, num recalque que nem a IA dá conta. Dona Neide leu o famoso, do outro nunca tinha ouvido falar, mas deve ser culpa dela. Ela pode até não gostar muito do estilo, mas entende a importância e quantos gols do Pelé foram marcados em seu nome.
Teve também aquele editor, um homem cis, branco, terno bem cortado, que mal pisou no estande e já virou a própria vitrine. “Conta aí, como foi que você nasceu assim? Já pensou em mudar alguma coisa? Como seus pais lidaram com isso?”. Imagine se a pessoa acima for trans, pensou Neide. E, no impulso de acolher, outras se achegavam, mas até a boa vontade esbarrava nos pronomes.
O editor da patota mais rica do país disse que todo o sofrimento de um autor ele sente em dobro. Dona Neide tem um sério problema: acredita piamente em frases fora de contexto. Mas desacredita em perguntas com negativas: “Não tem desconto?” Seria justa para as livrarias de bacana, para as editoras das vitrines, mas foi endereçada a uma independente. E Dona Neide pode até parecer brava, mas vai explicar de novo: uma editora independente séria preza pelo texto, pela capa, edição, revisão, tem equipe reduzida, trabalho dobrado, às vezes nem é da cidade, precisa pagar aluguel do estande, transporte, direitos autorais, comida, bebida ― remédios diz que não precisou ― e não dá pra baixar o preço, você sabe quantos livros exemplares são vendidos?, mas concorda que algumas livrarias e editoras poderiam. Deveriam.
Dona Neide gosta de fetiches, mas descarta que livro vire produto só pra bacana com pet no colo. Literatura tem que sujar a mão, mas pode afagar, entreter, todo mundo gosta de ouvir um bom causo. Se o Pelé marcar um gol a cada leitor que aparece, não vai demorar para ele virar o maior artilheiro da história. Nem que precise chutar a bola que a Dona Neide deixou quicando no meio da praça.
Vale a pena ler
Diante de tantas conversas sobre livros, tato com páginas e palavras, é difícil recomendar apenas um, mas vamos lá:
ouvem-se latidas, latidas dissonantes, que variam no espaço, no tempo, na constelação de encontros de uma perra que se escapa – e se entra; e se escapa – e se entra. reverberação da vida latindo para a vida, comunicação que sobra às inteligibilidades demasiado humanas de uma cidade, eco varrendo chão, vida na pele, pele na caneta. matilha é um convite à escuta de ruídos que vão virando som e contam a trajetória de Analú Laferal – inacabada – como quem latisse, como quem tivesse escutado, digerido, entregado as próprias latências de sua vida travesti em paisagens colombianas no formato desse livro.
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sobre a autora:
Analú Laferal é escritora, transfeminista e artista colombiana. É professora de Estudos Culturais e Estudos Trans na Universidade de Antioquia, Universidade de Medellín e Universidade de Cochabamba. Tem trabalhos no campo do cinema, da literatura e da performance.
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tradução de ravel machado e flecha lemes
A editora Elle/Elu é composta por editores trans, publicar autorias trans latino-americanas e é traduzido por pessoas trans.
Por hoje é isso.
Agradeço quem dedicou seu tempo e chegou até aqui.
Fiquem bem, e até a próxima.
Adorei! Texto leve, criativo e inteligente, com muitas sacadas interessantes sobre os bastidores dessa feira. Deu até vontade de ir na próxima.
E essa Dona Neide, heim?